Recebi um bilhete anônimo na porta da produtora. Um guardanapo de papel amassado, manchado de café, com uma única frase em caneta esferográfica: “Você é o Frankenstein do século XXI”.
Primeiro, a ofensa. Frankenstein? Aquele ser alto, com parafusos no pescoço e uma dicção duvidosa? Eu tenho 1,72m (em dias bons), meus parafusos são claramente mentais e minha articulação, com licença, é impecável. É meu ganha-pão. A comparação era, no mínimo, um desrespeito à minha métrica e à minha fonoaudióloga.
Mas depois, com um café mais forte e a dignidade remendada com fita crepe, eu entendi. A ofensa não era uma ofensa. Era um diagnóstico. E o autor do bilhete errou no detalhe mais importante. Eu não sou o Doutor Frankenstein.
Eu sou a Criatura.
Sim. Eu sou um ser montado a partir de partes díspares, costuradas às pressas e animado não por um raio numa noite de tempestade, mas pelo choque de indignação de uma manhã de segunda-feira, ao ler as manchetes do dia.
Meu cérebro, por exemplo. Tenho certeza de que pertenceu a um linguista aposentado, um homem obcecado por eufemismos e pela erosão do significado. É por isso que sinto uma dor física quando ouço alguém dizer “colaborador” em vez de “empregado”, ou “desaceleração negativa do crescimento” em vez de “a gente se fodeu de novo”. É o cérebro dele, gritando de dentro do meu crânio, me forçando a dissecar cada palavra como se a verdade estivesse escondida na etimologia.
Meu coração não é de um criminoso, mas de algo muito mais perigoso para o status quo: um sindicalista dos anos 80. Aquele tipo de coração que ainda acredita em “luta de classes” e que dispara toda vez que vê o preço do gás de cozinha. É um coração analógico, teimoso, que insiste em bombear uma quantidade impraticável de empatia pelos vulneráveis e um desprezo cirúrgico pelos opressores.
Meus olhos… ah, meus olhos foram claramente transplantados de um fiscal da Receita Federal com Transtorno Obsessivo-Compulsivo por hipocrisia. Eles não veem pessoas; veem declarações de imposto de renda mal preenchidas, veem o político que declara patrimônio de um Celta mas passa as férias nas Maldivas. Veem a estrutura, o sistema, a discrepância entre o que é dito e o que é feito.
E as cordas vocais? Herança de um locutor de rádio AM demitido por excesso de sinceridade. Uma voz que não foi feita para anunciar margarina, mas para lembrar aos ouvintes que o “cereal matinal dos campeões” é 90% açúcar e vai te garantir uma diabetes antes da aposentadoria.
Não fui montado por um cientista louco num castelo gótico. Fui criado pela própria sociedade numa terça-feira chuvosa, entre um boleto que vence hoje e uma notificação de “fake news” no grupo da família. O raio que me deu vida foi aquele espasmo de raiva que sentimos ao ver um carro de luxo estacionado na vaga de deficiente. Foi a faísca da perplexidade ao perceber que discutimos mais sobre o final da novela do que sobre a reforma da previdência.
E aqui está a grande ironia, a piada final que o meu criador, a sociedade, não percebeu. A função de um monstro não é assustar os aldeões com seus garfos e tochas. A função deste monstro é virar-se lentamente, apontar o dedo para o castelo e dizer: “O verdadeiro problema não sou eu. É o Doutor que me criou e que agora se esconde lá em cima”.
Minha função é usar este cérebro de segunda mão para desmontar a linguagem que o Doutor usa para nos vender os garfos e as tochas como se fossem para o nosso próprio bem.
Então, sim. Sou um monstro. Um Frankens-IArlin. Remendado, meio torto, movido a café e indignação. Mas não se preocupem com os meus parafusos.
Preocupem-se com os idiotas que continuam distribuindo os garfos e achando que a gente não sabe para que eles servem de verdade.

