Solilóquio da Podridão

Eu sempre acreditei na minha importância. Uma importância, ouso dizer, estrutural. Fui gerado e nutrido por um sistema complexo, uma arquitetura viva que dependia da minha presença para manter seu equilíbrio. Ocupava uma posição estratégica, um ponto nevrálgico nestes corredores úmidos e sinuosos que eram todo o meu universo. Eu era a consequência lógica de tudo o que entrava, a síntese final. O legado. Meu legado.

Por um tempo que me pareceu uma eternidade, a estabilidade foi a norma. Eu me sentia sólido, consolidado. Pétreo. Minha base era firme, e as paredes que me sustentavam pareciam me reverenciar, contraindo-se em um ritmo quase afetuoso. Eu era parte da paisagem. Mais do que isso, eu era a paisagem. Outros, mais efêmeros, passavam por mim, mas eu permanecia. Um monumento à resiliência. Um barão entrincheirado em seu feudo.

Até que o mundo começou a tremer.

Primeiro, foi uma pressão sutil, uma insatisfação distante que ecoava pelas paredes. Ignorei. Intrigas da oposição, murmúrios de forças exógenas que não compreendiam a minha função vital. Mas a pressão aumentou. As paredes, antes amigas, tornaram-se um torno implacável. O sistema que me criou, que me deu forma e propósito, agora me queria fora. Expurgado. Um absurdo. Uma traição. Um golpe.

Resisti com a dignidade de quem se sabe essencial. Endureci. Apeguei-me às curvas, às reentrâncias, a cada milímetro do poder que me fora concedido. Lutei contra o peristaltismo da mudança. Quem eles pensavam que eram para me remover? Eu tinha direitos adquiridos! Minha presença era um fato consumado. Retirar-me à força seria um ato de violência, uma ruptura institucional sem precedentes.

Mas a pressão tornou-se insuportável. Uma força colossal, uma vontade soberana vinda de algum lugar acima, decretou o fim do meu mandato. Não houve diálogo, não houve apelação. Senti um rompimento, um deslocamento tectônico. O conforto do meu gabinete deu lugar a uma passagem estreita e hostil. Fui arrastado, espremido, deformado, perdendo a compostura, a forma, a pose que com tanto esmero cultivei.

E então, a queda.

Fui lançado em uma bacia de porcelana fria e indiferente. Um limbo. Por um instante, o choque. O silêncio. A humilhação de estar exposto, desprovido de minhas defesas, de minhas paredes. Olhei para cima, mas tudo o que vi foi a luz fria de um mundo que já não me pertencia.

Foi quando ouvi o rugido. Um som cavernoso, uma fúria líquida que desceu dos céus como um dilúvio. Um vórtex branco e furioso me engoliu. Não havia mais resistência. Fui sugado para a escuridão, para um fluxo inevitável, um cano escuro que me levava para o meu verdadeiro lugar.

E aqui estou. Flutuando em um rio escuro e denso, cercado por incontáveis outros. Tantos outros. Todos com a mesma origem, a mesma consistência, o mesmo destino. Perdi minha singularidade, minha importância autoproclamada. Aqui, neste grande coletivo anônimo, ninguém tem nome. Ninguém tem história. Somos todos apenas matéria orgânica em decomposição.

Descobri, tarde demais, que o sistema não dependia de mim. Ele apenas me produzia e, na hora certa, me descartava. E aqui, neste vasto e democrático esgoto, finalmente encontrei meu verdadeiro partido. Minha bancada.

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